sexta-feira, 1 de maio de 2009

Ravel - Concerto para Piano em Sol Maior (Orchestre de la Suisse Romande, 04 de maio)

Maurice Ravel (1875-1937),

francês com forte sangue espanhol (fato que se refletiu em obrar como a Rapsódia Espanhola e o Bolero), é o compositor do Concerto para Piano em Sol Maior que ouviremos nesta semana. De temperamento reservado e, ao mesmo tempo, boêmio, chegava em casa de manhã, e frequentemente se encontrava, na escada, com seu irmão que já estava saindo para trabalhar. Dizia que sua sorte era saber fazer “um pouco de música”, senão não teria de que viver. Quando foi passar uma temporada nos Estados Unidos, apaixonou-se pelo Jazz e ficava por horas ouvindo Louis Armstrong. Não ouviu o 'conselho' do nosso Carlos Lyra e não se virou para poder se livrar da influência do jazz. Ao contrário, essa influência se faz presente em sua obra, inclusive no concerto para piano.
O próprio Ravel queria estrear seu concerto. Porém, problemas de saúde causados por fadiga o impediram de realizar esse intento. A estréia, em 14 de janeiro de 1932, sob sua regência, ficou a cargo da pianista Marguerite Long, que havia encomendado um trabalho a Ravel. O compositor, aliás, dedicou a ela o concerto.
Dizer que Ravel é um grande orquestrador é chover no molhado. Está aí de prova o seu Bolero, que é, praticamente, 'só' orquestração. No concerto para piano, há belíssimos momentos em que o piano 'reina' sozinho (como no início do segundo movimento) e momentos de rica orquestração.
Das interpretações que vi e ouvi, a que mais me tocou foi a da dupla Arturo Benedetti Michelangeli e Sergiu Celibidache.
O concerto para piano de Ravel começa, literalmente, com uma chicotada. Em seguida (ou quase simultaneamente), piano e piccolo entram com um dueto um tanto 'etéreo'. Outros instrumentos entram em cena e temos o primeiro movimento, 'Allegramente', que não é exatamente um 'allegro', mas bastante delicado em alguns momentos. Falei, acima, do jazz: logo no primeiro movimento já se notam frases longas e estilo improviso de jazz tocadas pelo piano. Interessante notar, também, como Ravel explora as diversas possibilidades de emissão sonora dos instrumentos, sempre sem exageros. O segundo movimento, como já foi mencionado, começa com o piano solo comportadíssimo. Só depois de algum tempo que os sopros entram para nos lembrar que se trata de uma obra do início do século XX. Quanto ao terceiro movimento... o vídeo com o fantástico Leonard Bernstein tocando vale mais que qualquer palavra! Vejam:
http://www.youtube.com/watch?v=xjdAyy1xatA

segunda-feira, 27 de abril de 2009

Berlioz - Episódios da Vida de Um Artista, Op 14 (Orchestre des Champs-Elysées, 27 a 28 de abril)

São Paulo, 27 de abril de 2009. Na Sala São Paulo espero o início do concerto com a Orchestre des Champs-Elysées, sob a regência do maestro belga Philipe Herreweghe, diretor artístico do grupo. No camarote em que estou, ouço uma senhora, pálida, de grandes olhos, falando em um inglês britânico. Ela conta da noite de novembro de 1932, no Conservatório de Paris, quando a Sinfonia Fantástica e Lelio, ou o Retorno à Vida, conjunto que leva o nome de Episódios da Vida de Um Artista (Op. 14) foram apresentadas juntas pela primeira vez. Naquela noite, na plateia, era ela o centro das atenções: todos os que chegavam para assistir ao concerto olhavam em volta, buscando identificar aquela que seria a musa inspiradora de Berlioz. Naquela noite, após ouvir a alma do compositor traduzida em música, ela se redimiu e cedeu ao seu amor -- ou sua obsessão. Agora, quase setenta e sete anos depois, como num passe de mágica, aquela noite é revivida no Brasil, em São Paulo, a milhares de quilômetros de Paris.

A Orchestre des Champs-Elysées é um conjunto especializado em músicas do período romântico. Toca compositores como Beethoven, Berlioz, Bruckner... Por ser financiada pelo governo francês, é exigido que dê prioridade a compositores franceses (como é o caso de Berlioz). Para a interpretação autêntica -- ou historicamente informada --, a orquestra usa instrumentos do início do século 19, autênticos ou réplicas. Um exemplo é o oficleide, antecessor da tuba. Além dos instrumentos, a técnica de interpretação também busca aproximar-se da usada no romantismo, como explicou o maestro Herreweghe em entrevista ao jornal O Estado de São Paulo: "
Em Berlioz, por exemplo, não se trata apenas da utilização de instrumentos construídos segundo os modelos da época. Há também questões de interpretação, ausência de vibrato, preocupação com o legato. Na música de Berlioz, o colorido orquestral é muito importante. E a maneira como o interpretamos reduz a força orquestral em quase 50%, o que nos permite observar todas as cores de maneira mais interessante e original."


Sinfonia Fantástica em Cinco Atos.
(
Symphonie fantastique en cinq parties), Op. 14a, foi composta por Hector Berlioz (1803-1869), integrante do romantismo francês, em 1830. Embora tenha estreado no Conservatório de Paris em dezembro do mesmo ano, só foi publicada 15 anos mais tarde, após várias revisões e modificações.
É interessante a história dessa composição. Ao assistir, em 1927, no Théâtre de l'Odéon, à peça Hamlet de Shakespeare, Berlioz se apaixonou pela atriz irlandesa Harriet Smithson, considerada uma atriz de segunda linha.
Rejeitado pela inacessível atriz, Berlioz se convenceu de que era uma cortesã, indigna de seu amor. Nessa linha, e soba a influência de Weber, Gothe e Beethoven, começou a compor a Sinfonia Fantástica: a história de uma paixão seguida por uma desilusão. Para expor a degradação do ídolo, porém, Berlioz não poderia se valer do modelo tradicional da sinfonia. Construiu um drama em cinco partes (expostas abaixo), que evolui dos sentimentos mais puros e apaixonados aos delírios e sarcasmo. Durante toda a obra está presente a amada, ou objeto da obsessão, representada por uma melodia, uma ideia fixa.
A sinfonia é, na verdade, uma colcha de retalhos onde melodias previamente compostas por Berlioz são alinhavada pela ideia fixa. Isso não diminui o valor da obra. Ao contrário, dá maior legitimidade ao subtítulo e à intenção do compositor: episódios da vida de um artista. Faz uma revisão de sua obra, de seus fracassos -- de suas peças não executadas, de suas duas eliminações do concurso de composição de Roma -- e também de seus sucessos -- dos prêmios de Segundo e Primeiro lugar no concurso de Roma e da aceitação como compositor. Ao lado de tudo isso, está sempre presenta a paixão pela atriz inglesa, que o perseguia havia quatro anos.
Harriet Smithson não foi à estreia da obra em 1930. Porém, dois anos mais tarde, em novembro de 1932, ela compareceu à execução, em Paris, quando a Sinfonia foi seguida pelo monodrama lírico Lelio ou o retorno à vida -- exatamente como ocorrerá na Sala São Paulo, nos dias 27 e 28 de abil!. Após esse acontecimento, Berlioz teve uma recaída e declarou-se à atriz, dessa vez com sucesso. Casaram-se no ano seguinte, mas ficaram poucos anos juntos.

A Sinfonia, primeiro exemplo de música programática instrumental, é acompanhada por um roteiro, escrito pelo próprio compositor, publicado no Le Figaro dez dias antes da estreia, que, segundo Berlioz, deve ser distribuído à plateia antes da execução da obra. O roteiro também sofreu modificações. Segundo a versão de 1932.
O compositor teve o objetivo de desenvolver (...) diferentes situações da vida de um artista. (...) O programa a seguir deve ser considerado como o texto falado de uma ópera (...).

Segue a tradução da versão de 1832 do roteiro, a partir do francês fonte:
http://fr.wikipedia.org/wiki/Symphonie_fantastique).

Primeira Parte: Devaneios, Paixões.
O autor supõe que um jovem músico, afetado por essa doença moral que um escritor célebre chamou de “onda de paixões” (vague des passions), vê pela primeira vez uma mulher que reúne todos os charmes do ser ideal com o qual sua imaginação sonha, e se apaixona perdidamente por ela. Por uma singular bizarrice, a imagem queria não se apresenta ao espírito do artista sem estar associada a um pensamento musical, onde ele acha um certo caráter passional, mas nobre e tímido como o objeto de seu amor.
Esse reflexo melódico e seu modelo o perseguem sem cessar, como um dupla idéia fixa. Essa é a razão da aparição constante, em todos os movimentos da sinfonia, da melodia com que começa o primeiro allegro. A passagem desse estado de devaneio melancólico, interrompido por alguns acessos de alegria sem causa, para o de uma paixão delirante, com seus movimentos de furor de ciúmes, seus retornos à ternura, suas lágrimas, etc, tudo isso é o tema do primeiro movimento.
[O primeiro movimento começa com uma introdução lenta – a melodia que representa a idéia fixa – seguida por um allegro, onde estão presentes a alegria sem causa, os acessos de ciúmes, etc]

Segunda Parte: Um Baile.
O artista é colocado nas mais diversas circunstâncias da vida, no meio do tumulto de uma festa, na tranqüila contemplação das belezas da natureza; mas por toda parte, na vila, no campo, a imagem querida vem se apresentar a ele e lançar perturbação a sua alma.
[Logo no início do segundo movimento, após bela participação da harpa, ouve-se a valsa do baile. E eis que surge a idéia fixa dá sinais de vida. Na versão de 1955, só é feita referência à cena do baile, sem se falar em contemplação das belezas da natureza, etc. De fato, no segundo movimento o baile está presente o tempo todo, o que nos leva a crer que as modificações no roteiro reflitam modificações na versão final da música.]

Terceira Parte: Cena no Campo.
Encontrando-se uma tarde no campo, ele escuta ao longe dois pastores que dialogam um ranz de vaches [canção]; esse duo pastoral, o lugar da cena, o leve barulho das árvores docemente agitadas pelo vento, alguns motivos de esperança que ele passou a conceber, tudo colabora para devolver ao seu coração uma calma não usual e a dar a suas idéias uma cor mais radiante. Ele reflete sobre seu isolamento; ele espera em breve não ser mais tão só... Mas se ela o enganar... Essa mistura de esperança e de temor, essas idéias de felicidade perturbadas por maus pressentimentos, formam o tema do adagio. Ao fim, um dos pastores retoma a ranz de vaches; o outro não responde mais... Barulho longo de trovão... Solidão... Silêncio...

Quarta Parte: Marcha do Suplício.
Tendo alcançado a certeza de que aquela que adora não só não responde ao seu amor, mas também é incapaz de compreendê-lo, e que, além disso, ela é indigna dele, o artista se envenena com ópio. A dose do narcótico, fraca demais para levá-lo à morte, o mergulha em um sono acompanhado das mais terríveis visões. Ele sonha que matou aquela que amava, que é condenado, conduzido ao suplício, e que assiste à sua própria execução. O cortejo avança ao som de uma marcha ora sombria e violenta, ora brilhante e solene, na qual um barulho surdo de passos graves sucede sem transição aos mais barulhentos estrondos. Ao fim da marcha, os quatro primeiros compassos da idéia fixa reaparecem como um último pensamento de amor interrompido pelo golpe fatal.

Quinta Parte: Sonhos de uma Noite de Sabbat.
Ele se vê no sabbat, no meio de um grupo horrível de sombras, de feiticeiras, de monstros de todas as espécies, reunidos para seu funeral. Barulhos estranos, gemidos, gargalhadas, gritos longínquos que parecem ser respondidos por outros. A melodia amada reaparece ainda, mas ela perdeu seu caráter de nobreza e timidez; tem somente um ar de dança ignóbil, trivial e grotesca: é ela que vem ao sabbat... Ruidosa de alegria à sua chegada... Ela se mistura à orgia diabólica... Sinos fúnebres, paródia burlesca de Dies Irae. A dança do Sabbat e o Dies Irae juntos.


Links:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Hector_Berlioz
http://pt.wikipedia.org/wiki/Sinfonia_Fant%C3%A1stica
http://www.hberlioz.com/Scores/sfantastique.htm (contém o roteiro em inglês)
http://fr.wikipedia.org/wiki/Symphonie_fantastique (contém o roteiro em francês)